Por:
Regina Castro and Vinicius S. Reidryk
Aquelas ruas não eram nada seguras, nas vielas prostitutas se proliferavam desmedidamente, o fio da navalha corria solto, tanto com marginais quanto com crimes sem solução e esses continuavam no oculto, engavetados em estantes empoeiradas das delegacias de polícia. Gritos não eram raros de serem escutados, às vezes as próprias prostitutas amanheciam inertes, jogadas na sarjeta, elas que já conheciam o local e tinham cada esquina por moradia... A morte buscava sem distinção de raça ou credo, mas logo outra assumia o lugar, o lucro não podia parar.
A morte encoberta por um traje elegante e palavras finas e mais uma era arrastada de boa vontade ficando lá, sem marcas nem manchas, pareciam dormir e logo o sujeito dobrava a esquina, o trabalho estava feito, o sorriso cínico dava o ar do dever cumprido, dobrava em algum ponto da rua sumindo na penumbra.
Os legistas apareciam, catavam restos do que um dia foi alguém e mais um caso ficava sem solução, isso já estava deixando os detetives loucos, esse caso já estava indo longe demais, os policiais pareciam baratas em cima da podridão que a cidade estava se tornando, correndo para todos os lados, e de longe alguém divertidamente, observava.
Na igreja havia apenas um padre, pois os outros desistiram de continuar a dar a palavra de Deus num lugar tão obscuro, maltratado. Segundo eles nada podia ser feito, então não queriam pôr riscos as suas vidas mesmo acreditando que um dia isso finalmente chegaria ao fim.
João era um padre calmo e preocupado, costumava descobrir sozinho o que estava acontecendo na cidade em que foi criado. Ficava diante do altar rezando, entrando em contato com Deus e sendo correspondido.
- “Ele pagará por seus atos!” – veio uma voz audaciosa em sua mente.
Poucas pessoas freqüentavam a igreja, muitas haviam desacreditado a palavra de Deus por terem perdido membros da família. - E agora o que um padre poderia fazer numa cidade praticamente fantasma? – pensou.
Nada que uma pesquisa não ajudasse. Voltou para o quarto e a sua investigação sobre as mortes e quem estava por trás disso foi iniciada. O padre gostaria que a cidade voltasse a ser como em tempos atrás, tempos de infância...
Foram sete vítimas até agora, incluindo um padre.
Tudo transcorria sem regras, uma terra sem leis, somente um padre e todo um corpo policial e o assassino parecia brincar de bandido e mocinho como em tempos de criança... Só que desta vez, real...
A igreja agora muda só recebia as preces do morador que insistia em não abandoná-la, o padre João, ele ainda tinha fé que tudo mudaria... Mas suas investigações não estavam surtindo efeito... Alguém ainda brincava de Deus nas ruas sombrias, brincava de Deus ou demônio, sentia prazer pelo que fazia, e pelo modo dele pensar talvez, fazia com a perfeição de um artista.
Pesquisava em sites e lia o jornal todos os dias. Continuava pensando quando e onde seria que este assassino voltaria a atacar.
O padre tinha o pensamento firme, iria encontrar o culpado e esse herege pagaria com certeza por seus atos... O suor descendo por suas têmporas e as lágrimas encharcando sua batina, as mãos juntas e as orações ainda mais fortes em seu coração quase cansado...
E um sussurro escapou por entre seus lábios...
- Deus, ajude-nos, por favor!
Ao anoitecer, percebeu que não era mais tempo de ficar em casa, refugiado num lugar que pensava todos os dias estar a salvo.
Os ataques aconteciam somente à noite, sabia que se quisesse alguma pista, teria de sair dali e enfrentar o medo da escuridão.
Com roupas normais percorreu ruas, entrando e saindo de vielas cada vez mais estreitas, o odor era algo que jamais esqueceria, parecia esgoto a céu aberto e aquelas mulheres, oferecendo seus corpos a quem passasse, algumas delas com aspecto doentio... Padre João perguntou se tinham visto algo estranho por aqueles dias, mas ninguém parecia se importar... – A que ponto a raça humana chegou, Senhor meu Deus... – pensava o padre a todo o momento.
Ao longe avistou uma sombra, alguém se aproximava... O indivíduo chegou perto de uma garota, esta sorrindo abriu o decote ainda mais, o padre ficou olhando ao longe, o homem chegou mais perto da garota e abraçou-a esta começou a beijá-lo, o estranho estava de costas e o padre nada via dele, nenhuma parte sequer de pele, com cuidado João foi andando, o estranho levou a mulher para o beco ao lado, o padre congelou, algo naquele ser deixava-o preocupado, não demorou muito tempo e um vulto saiu do beco rapidamente, ao ficar frente a frente com o padre, parou e ficou a fitá-lo, padre João paralisado... Não conseguia mover um centímetro, estava preocupado com a mulher que não havia saído, mas aquele olhar congelou sua espinha, um olhar de pura crueldade, um olhar surreal, ele nunca tinha visto nada igual em toda sua vida e olha que ele já tinha muita experiência no ministério, já tinha passado por muita coisa percorrendo os caminhos de Deus, mas aquilo era uma provação que nunca tivera antes, o ser entortou a cabeça de lado olhando-o fixamente, seus olhos brilhavam na escuridão projetada dos prédios atrás de si, antes dele sair João jurou ter visto um sorriso, algo monstruoso... Um sorriso que fez seu coração pular, logo depois o estranho saiu deixando o padre ainda inerte olhando o nada, passou alguns segundos e João conseguiu sair de seu pavor e foi até a mulher, demorou a encontrá-la, ela estava no fundo do beco, deitada, graciosamente colocada em cima de uns sacos de lixo, como se estivesse em seus aposentos, ele tentou ver o pulso dela, mas não conseguiu, chegara tarde, ela jazia ali e nunca mais levantaria, nunca mais veria a luz do dia. O padre curvou a cabeça chorou e deu a extrema unção à moça, ela estava muito pálida e os lábios arroxeados...
João caiu de joelhos e as mãos juntas na frente do rosto, pedia por Deus, pedia por mais ajuda, achava que não daria conta sozinho... Quando procurou tirá-la do lugar viu que do seu pescoço um filete de sangue ainda fresco escorria por seu busto, no chão, dentro da pequena poça um bilhete... "Pare de me seguir... ou encontrará seu destino e prometo que não será nada agradável."
O padre se recompôs, pegou o corpo esperou anoitecer e secretamente enterrou no cemitério da igreja, ninguém nunca saberia... ao terminar palmas veio de trás e uma risada alta preencheu o lugar.
- Por que me segue se sabe quem sou?
O padre voltou-se para o lado de onde vinha a voz gutural.
Fechou os olhos e começou a rezar.
- Desapareça cria do inferno. In nomi di patris et filis et espiritu sancti...
- Amén... - terminou a criatura ironicamente.
- Por que está entre nós? Por que assola esta terra com teus prazeres mundanos e infernais?... - o padre foi interrompido.
- Calma, uma pergunta de cada vez bondoso padre. - Pare de me seguir, ou encontrará mais presentes meus...
A voz o deixou da mesma forma que apareceu... de repente!
- Aquele ser não é igual aos outros de sua espécie. Não é vulnerável como eu pensei que fosse, então como posso dar um fim nisso antes que todos desta cidade sumam de vez? – o padre pensava roendo as unhas ainda perturbado com todas aquelas coisas que aconteciam e não saber como evitar e isso o deixava mais assustado.
João preferiu descansar, deitar em sua confortável cama e esquecer esse fato por enquanto, mas ao dirigir-se ao seu quarto ouviu algumas vozes como costumava ouvir, eram vozes agradáveis como se os anjos estivessem falando algo com ele há muito tempo e que ele nunca soube o que realmente significava. Tirou os seus sapatos e meias, pegou roupas limpas e tomou um bom banho gelado, as vozes haviam sumido. Depois recolheu-se para o tão desejoso descanso, olhou para cima e viu uma cruz dourada no teto. Sem entender ele visualizou aquilo durante um tempo, mas logo o objeto sumira repentinamente. Achou estranho e finalmente resolveu dormir.
- Olá padre! Fico feliz em vê-lo novamente. – o sujeito abriu um largo sorriso debochado. -Você deveria ter lembrado sobre o que te falei ontem! – o sujeito foi se transformando em uma espécie de monstro com dentes afiados e a sua pele extremamente pálida e pegou o pescoço dele com muita facilidade e o levantou e assim foi esmagando, esmagando até explodir os seus miolos e quando finalmente deu um fim ao padre...
João acordou na mesma hora respirando rapidamente, ofegante e com o seu coração disparado, pensou que havia morrido. Quando olhou para o relógio despertador eram apenas sete horas da manhã, já havia amanhecido.
- Que... Que pesadelo horrível! – ele balbuciou.
Enquanto se arrumava para sair dali alguém batia no imenso portão lá de fora, ele ficara pensando paralisado que fosse a criatura, quase deixou a escova de dente cair de suas mãos enquanto escovava, mas se lembrou que era dia e o individuo só aparece à noite. Gargarejou e cuspiu, fez isso umas três vezes e depois gritou que já estava indo e então caminhou rapidamente com as chaves na mão e abriu o portão.
- Olá padre, como vai? – era o seu amigo policial.
- Ah é o senhor. Desculpe está tudo bem por aqui. – suspirou mais aliviado.
- Sabe... Quando nós conversamos outro dia sobre uma mulher que sumiu? Pois é outra desapareceu e eu pensei que você soubesse de alguma coisa.
- Sinto muito policial, mas eu não fiquei sabendo de nada. Sou apenas um padre.
- É, e o único no local. Por que está aqui? – o policial indagou.
- Esse sempre foi o meu lar. – João respondeu com clareza.
- Tudo bem. Qualquer coisa entre em contato. – Terminou o policial.
- Obrigado Raphael pela gentileza.
O padre se recolheu, terminou seus afazeres e abriu as portas... como de costume a missa teria que começar, mas a igreja continuava vazia, o padre calado olhava o Cristo crucificado, ainda com fé pedindo por auxílio, nem que fosse seu último ato ele livraria aquele local do demônio... ficou mais alguns minutos em silêncio quando ouviu alguém se aproximar, sem olhar para trás caminhou até o altar e abrindo a bíblia olhou para a frente... estagnou.
- Ha ha ha... vim ver seu público e seu show de perto, mas parece que não possui mais platéia... - falou o estranho sorrindo com seus dentes pontiagudos a mostra.
- Não pensei que... - o padre balbuciou algumas palavras espantado...
- Nunca pensou que eu viria até você... nunca pensou em me ver à luz do dia... nunca pensou mais o quê Senhor padre?
- o vampiro terminou a frase do padre, que continuava incrédulo.
- Vou mandá-lo de volta ao inferno, já que não pode mais ter redenção.
- Sério? Mas com que certeza me diz isso? Na certeza de que toda criatura pura será levada ao paraíso se for fiel? Eu fui fiel e olha o que eu ganhei... nada mais justo roubar-lhe um pouco do rebanho... Padre... não tem como me levar de volta ao inferno, nunca fui lá. Mas vivo em um aqui, com você!
O padre franziu a testa... não entendia o que ele havia falado... como ele tinha sido fiel? sendo um monstro!!!
- Pois é padre... vejo tanta dedicação da sua parte... tanto amor... já fui assim, como você... já fui um padre há muito tempo! Posso te dizer uma coisa? Não vale a pena!
João via os olhos da criatura faiscando, não sabia que ele viria de novo à sua procura.
- Um deslize e fui amaldiçoado pelo Pai... Agora ando por suas esquinas e tenho que me alimentar...
João pensativo mostrou-se interessado e ao mesmo tempo pensava em como sair daquele lugar... ou em como enfrentá-lo.
De repente a criatura saltou do banco onde estava e avançou em cima do padre com a boca arreganhada salivando, João sentiu seu hálito fétido banhando-o... sentiu nojo... O vampiro o segurou pelos braços e já ia mordê-lo quando reparou que João estava de olhos fechados sussurrando...
- Isso padre, reze... reze por sua alma... para o lugar onde vai, você vai precisar! - falou o vampiro inquieto.
Ao mesmo tempo em que segurava o padre, sentiu como se suas entranhas se contorcessem... estranho, pois ele há muito não sentia nada mais em seu corpo morto... sentiu sua garganta inchar e sua cabeça parecer uma bomba, mas continuou em cima do padre... quando quase não agüentando escutou o padre falar.
- Não rezo por mim... nem pra salvar minha vida... isso eu a daria se soubesse que com isso te salvaria. Rezo por ti... sei que não possui mais alma, mas rezo por ti, para que descanse e pare de fazer maldades, rezo a Deus para que te ajude, mesmo você sendo uma criatura, um vampiro... rezo para que tudo acabe!
Em agonia Alek mordeu o padre que se entregou aos caninos da besta e continuou com sua oração... Alek não aguentou mais e soltou o padre João que caiu de lado, inerte... gritou se segurando aos bancos e fumaçando... com raiva esbravejou para o altar... a fumaça aumentava e o vampiro gritava ainda mais... até que os raios solares invadiram a igreja estourando os vitrais e queimando o vampiro agora com toda a sua potência, Alek ainda olhava para o Cristo no altar quando se desfazia, logo depois somente suas cinzas estavam por todo o local.